Inclusão | Publicada em: 18/06/2012

Surdos superam deficiência e mostram para a sociedade que são capazes

Comunidade de não ouvintes busca cada vez mais a profissionalização e a inserção no mercado de trabalho

 

Ouvir mal é um sinal da de­fi­ci­ência au­di­tiva. Este pro­blema pode ser iden­ti­fi­cado quando há di­mi­nuição da ca­pa­ci­dade de per­cepção normal dos sons. Quem não ouve de ma­neira fun­ci­onal os ruídos do dia a dia pode ser con­si­de­rado surdo, e quem es­cuta com al­guma di­fi­cul­dade, par­ci­al­mente.
 
De acordo com a So­ci­e­dade Bra­si­leira de Of­tal­mo­logia (SBO), o grau de surdez é me­dido em de­ci­béis (dB) e pode ser de pelo menos quatro tipos: leve, médio, se­vero e pro­fundo. Cada uma das clas­si­fi­ca­ções re­pre­senta o nú­mero de dB ne­ces­sá­rios para que a pessoa con­siga ouvir. Leve, de 20 dB a 40 dB, médio, de 40 dB a 70 dB, e se­vero, de 70 dB a 90 dB. Já o grau pro­fundo é a partir de 90 dB, e é di­vi­dido em ou­tros três tipos. O pri­meiro é 90 dB, o se­gundo, entre 90 dB e 100 dB, e o ter­ceiro, acima de 100 dB.
 
Uma em cada mil cri­anças nascem com a surdez pro­funda. De acordo com censo re­a­li­zado pelo Ins­ti­tuto Bra­si­leiro de Ge­o­grafia e Es­ta­tís­tica (IBGE), 2,6 mi­lhões de bra­si­leiros apre­sentam algum grau de surdez, e ou­tros 7,2, grande di­fi­cul­dade para ouvir. O nú­mero re­pre­senta 5,2% da po­pu­lação do País.
 
Mas o nú­mero de in­di­ví­duos que pos­suem al­guma de­fi­ci­ência au­di­tiva mais leve é ainda maior. Num total de 190 mi­lhões de pes­soas, 14,8% da po­pu­lação se en­quadra nesta margem de pro­blemas li­gados à au­dição. Este valor re­pre­senta 28 mi­lhões de bra­si­leiros.
 
O IBGE es­tima que o nú­mero con­tinue a crescer, pois, além do cres­ci­mento po­pu­la­ci­onal, a quan­ti­dade de in­di­ví­duos idosos também tende a au­mentar, con­forme pes­quisa re­a­li­zada em 2010. Outro ponto de­ter­mi­nante é que, apesar do exame obri­ga­tório da ore­lhinha, que serve para iden­ti­ficar de­fi­ci­ên­cias au­di­tivas em cri­anças com até seis meses, muitas vezes ele não é feito. Neste pe­ríodo, há casos re­ver­sí­veis, e o exame tardio acaba não con­tri­buindo para a so­lução desta re­a­li­dade.
 
 
Su­pe­ração
 
Yasmin de Car­valho Reis é es­tu­dante de de­sign grá­fico e tem surdez pro­funda. Apesar de seu caso ser ele­vado, ela con­segue ouvir al­guns sons com a ajuda de apa­relho e até falar, graças à fo­no­au­di­o­logia. Ela conta que seu pro­blema acon­teceu em de­cor­rência da ru­béola que sua mãe teve du­rante a gra­videz. “Às vezes falo fal­tando som nas pa­la­vras”, ex­plica. Mas ela en­fa­tiza que, mesmo para aqueles com­ple­ta­mente surdos, ainda existe a Lin­guagem Bra­si­leira de Si­nais (Li­bras).
 
Ela diz que a de­tecção do pro­blema du­rante a in­fância é po­si­tivo em muitos casos. “Quanto mais cedo me­lhor, pois pode co­locar apa­relho au­di­tivo ainda bebê e é mais fácil de adaptar e con­se­guir falar, e quanto mais tarde co­locar apa­relho au­di­tivo, adulto é mais di­fícil, pois não con­segue ora­lizar di­reito.” E ainda com­pleta: “Tem surdo que não usa apa­relho au­di­tivo, pois não tem ne­nhum re­sul­tado, in­fe­liz­mente.”
 
“Pre­firo falar, pois acho mais fácil do que falar Li­bras, e tem muita gente que ainda não co­nhece essa língua.” Para ela, muita de­di­cação tem dado re­sul­tados. “Para uma pessoa com surdez pro­funda, é di­fícil falar ora­li­zando, mas, com muito trei­na­mento na fo­no­au­di­o­logia, ajuda muito, se es­tiver com muita von­tade.” Os sons que ela es­cuta por meio do apa­relho au­di­tivo não são ‘bons’, mas ela rei­tera que é me­lhor do que “não ouvir nada”.
 
 
Vida normal
 
Yasmin faz gra­du­ação na Fa­cul­dade de Tec­no­logia do Ser­viço Na­ci­onal de Apren­di­zagem Co­mer­cial (Senac). Ela conta que a ins­ti­tuição é muito bem equi­pada, o que a ajuda muito. De acordo com ela, o local ofe­rece in­tér­prete sempre ao lado do aluno em todas as aulas, além de pro­fes­sores de­di­cados e pre­pa­rados.
 
“Acho isso ótimo, pois muitas fa­cul­dades não têm esse tipo de ser­viço. Hoje, é comum  ver muitas pes­soas com pro­blemas au­di­tivos graves acre­di­tarem que têm ca­pa­ci­dade de fazer fa­cul­dade por causa disso, mas essa re­a­li­dade já está mu­dando”, res­salta Yasmin. 
 
“Muita gente me achava burra e dizia que eu não con­se­guiria aprender nada”, disse a ga­rota sobre o pre­con­ceito que so­fria na gra­du­ação.
 
Ela ainda conta que em muitos em­pregos as pes­soas pensam que os surdos não têm ca­pa­ci­dade de exe­cutar as fun­ções cor­re­ta­mente. Mas a es­tu­dante afirma não se deixar abater e tenta mos­trar todos os dias que con­segue fazer o tra­balho como qual­quer outro. “Apesar de uns pe­quenos pro­blemas como atender o te­le­fone ou ouvir mú­sica, é pos­sível, sim. Aprendi a lidar com esta si­tu­ação e vivo per­fei­ta­mente bem.”
 
 
De­fi­ci­ência não
 
A pro­fes­sora e mestre em lin­guís­tica apli­cada Claudney Maria de Oli­veira e Silva não uti­liza o termo de­fi­ci­ência au­di­tiva. “Clas­si­ficar desta forma é uma abor­dagem mé­dica, mas para mim os surdos apenas uti­lizam uma lin­guagem di­fe­rente, como outro idioma.”
 
Claudney tra­balha com a co­mu­ni­dade surda goiana há pelo menos 20 anos e desde 2001 está pre­sente no meio aca­dê­mico. Em 2006, foi con­vi­dada para par­ti­cipar da cri­ação do curso de Le­tras/Li­bras na Uni­ver­si­dade Fe­deral de Santa Ca­ta­rina (Ufsc), o pri­meiro do País, e atuou da Ca­pital, por meio de um dos polos do curso. “Este curso era a dis­tância e as aulas po­diam ser mi­nis­tradas daqui. Foi um passo muito im­por­tante, que abriu a pos­si­bi­li­dade de cursos pre­sen­ciais, como o da Uni­ver­si­dade Fe­deral de Goi­ânia (UFG).”
 
Desde 2009, a UFG vem tra­ba­lhando com o curso de Le­tras/Li­bras, que é uma mo­da­li­dade do curso de Le­tras. A mestre ex­plica que no ano inau­gural o ves­ti­bular foi como qual­quer outro e foram apro­vados para o curso 40 can­di­datos. Já no se­gundo ano, al­gumas mu­danças foram feitas para dar mais con­di­ções aos alunos não ou­vintes, e três foram apro­vados.
 
“Du­rante as provas para for­mação da se­gunda turma houve a pre­sença de in­tér­pretes  acom­pa­nhando os can­di­datos surdos e cor­reção da re­dação di­fe­ren­ciada por um banca de lin­guistas que co­nhece a lin­guagem de si­nais. Deste modo, eles primam pelo con­teúdo, e não pela forma.” Ela ex­plica que os surdos tendem a transpor a lin­guagem de si­nais para o por­tu­guês es­crito e acabam co­me­tendo al­gumas ina­de­qua­ções gra­ma­ti­cais. “É como quando trans­pomos ao pé da letra o por­tu­guês para o in­glês.”
 
Já no ves­ti­bular do ano pas­sado, quando houve tra­dução das provas para Li­bras, 13 pas­saram, e, neste ano, foram 15 apro­vados. Um dos pontos des­ta­cados por Claudney é o pro­grama de in­clusão so­cial feito pela uni­ver­si­dade. Se­gundo ela, as surdos que se ins­crevem para Le­tras/Li­bras con­correm entre si a 15 vagas. “São 15 vagas ga­ran­tidas. Este ano, isto já ocorreu.”
 
 
Pos­si­bi­li­dades
 
Para Claudney, as di­fi­cul­dades pas­sadas pelos surdos são cau­sadas pela so­ci­e­dade. “Eles são a mi­noria. Acre­dito que já tenha me­lho­rado muito, mas nós, de modo geral, não fa­ci­li­tamos o acesso para eles”, en­fa­tiza e com­para a si­tu­ação deles a um ou­vinte que es­teja em uma co­mu­ni­dade ja­po­nesa sem qual­quer ajuda.
 
Apesar de tudo, ela acre­dita que a co­mu­ni­dade surda possa ter uma vida com­ple­ta­mente normal. “Não acho, eu vejo que é pos­sível. Eles se casam, tra­ba­lham, têm fi­lhos, têm pro­blemas, ale­grias. Só são di­fe­rentes porque são mi­noria.”
 
A pro­fes­sora disse estar em­pol­gada com a pos­si­bi­li­dade de uma es­cola bi­língue, por­tu­guês e Li­bras, na Ca­pital, a partir do ano que vem. A Es­cola Mu­ni­cipal Maria Luiza, no Setor Ae­ro­porto, tem planos para ini­ciar desde o fun­da­mento a dis­ci­plina de Li­bras em sua grade. “E ainda mais, será tudo nas duas lín­guas.”
 
“Me sinto pri­vi­le­giada”, diz a mestre sobre tra­ba­lhar com este pú­blico. “No mo­mento his­tó­rico desta co­mu­ni­dade, tenho dado minha con­tri­buição. Sempre vi pes­soas ca­pazes e fico feliz cada vez mais, mesmo que aos poucos, com a so­ci­e­dade vir dando con­di­ções para os surdos mos­trarem seu po­ten­cial”, fi­na­liza.
 
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